segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Nota Técnica sobre o julgamento pelo STF da ACO-312, referente à nulidade de títulos de propriedade sobre a Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu

No momento em que a ação Cível Originária (ACO-312), referente à nulidade de títulos incidentes na Reserva Indígena Caramuru-Paraguaçu, na Bahia, volta à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), julgamos oportuno trazer mais uma vez a público as informações de caráter legislativo, histórico e antropológico que subsidiam de modo inconteste os direitos territoriais indígenas sub judice na lide.
1. Do Processo de Constituição Legal, Histórica e Social da Reserva Indígena Caramuru-Paraguaçu
1.1. Em 1926 o Estado da Bahia, através da Lei Estadual 1916, de 09 de agosto, determinou destinar “50 (cinquenta) léguas quadradas de terras em florestas gerais ou acatingadas, para o gozo dos índios Tupinambás e Patachós, ou outros ali habitantes” (art. 1º).
1.2. A figura constitucional do “reconhecimento” “aos índios” de “direitos (…) sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, nesses termos consagrada na Constituição de 1988, aparece pela primeira vez apenas na Carta Constitucional de 1934, em que está, em seu artigo 129, sob a formulação de que “Será respeitada a posse de terras aos silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Tal figura de direito aparece daí por diante em todas as constituições brasileiras, até a dita de 1988, ora em vigor.
1.3. Entretanto, um tal dispositivo constitucional não existia quando da supra referida destinação de terras a índios em 1926.
De fato, durante todo os períodos colonial, imperial e republicano até a dita carta de 1934, a atribuição legal de terras a indígenas se fez apenas por “destinação” ou “doação” formais por parte do ente estatal que detinha, por Lei, o direito sobre essas terras – Rei de Portugal no período colonial, e, em seguida, Imperador e, no período republicano inicial, os Estados, proprietários legais das terras ditas “devolutas” desde a Lei de Terras de 1851.
1.4. Ao assim destinar terras a indígenas, não tinha evidentemente o Estado a intenção de “respeitar” ou “reconhecer” a sua “posse” ou “ocupação” tal qual se daria então, posto que essa figura legal não existia.
Com efeito, como se pode depreender facilmente do conhecimento de toda a história das relações entre Estado e indígenas no Brasil, do período colonial àquela altura do republicano, a atribuição formal de terras a indígenas tinha antes o objetivo de reunir a esses em espaços determinados, de forma compulsória quando necessário, deslocando para dentro das áreas assim destinadas diversos contingentes de população indígena, frequentemente de grupos socialmente bem distintos entre si e de origens etnolinguísticas diversas, de modo a, com essa sua circunscrição territorial, liberar terras para a ocupação colonial.
1.5. Não terá sido outro o intento do Estado da Bahia ao fazer a supra referida destinação.
1.5.1. Como é sabido, ainda se encontrava em plena vigência no Sul da Bahia, nas décadas iniciais do século XX, o processo de ocupação de terras pela expansão da lavoura cacaueira. Do mesmo modo, havia ainda aí bandos indígenas autônomos e sem contato regular com a sociedade nacional, sendo as táticas e operações de dizimação destes pelas frentes de expansão cacaueira igualmente conhecidas e registradas na documentação e literatura especializadas.
1.5.2. Por outro lado, seguindo uma tendência do final do período imperial e início do republicano em toda a região, o estado da Bahia, por sua Lei 198, de 21/08/1897, havia extinguido os aldeamentos indígenas no estado, deixando assim ao desabrigo de reconhecimento e assistência estatais enquanto grupos sociais específicos e diferenciados, contingentes indígenas habitantes dos sítios desses antigos aldeamentos de origem imperial ou mesmo colonial, como os existentes, na região Sul da Bahia, no seu litoral (notadamente Olivença) ou às margens dos rios Colônia e Pardo. Uma tal extinção também abrira esses sítios à penetração das frentes de expansão cacaueira, não sem ocorrência de conflitos por vezes graves com os contingentes indígenas aí situados, como notoriamente ocorria então no caso de Olivença.
1.5.3. Parece claro assim que, ao fazer a supra referida destinação, tinha o estado a intenção de reunir, em uma área circunscrita para esse fim, tanto os bandos ainda isolados em toda a região, quanto esses contingentes em extintos aldeamentos, ambos em explícitas situações de confronto com a sociedade regional em franca expansão territorial.
1.5.4. Não por acaso menciona a referida Lei que a área que institui se se destinaria “ao gozo dos índios Pataxós e Tupinambás”, sendo sabido, àquela altura, que pelo menos boa parte dos bandos isolados seriam de já conhecida etnia pataxó; e que o mais conhecido dos aldeamentos extintos, o de Olivença, também o que vivia maior conflito com a sociedade regional, era de origem de Tupis da costa, portanto “Tupinambás”.
Mas não esquece o texto legal de mencionar “ou outros ali habitantes”, o que mais uma vez denota a sua intenção de circunscrever de modo abrangente, na área destinada, todos os contingentes indígenas de uma região, o Sul da Bahia, então em franco processo de ocupação pela expansão de uma importante frente econômica regional.
Nesses termos, o “ali habitantes” não pode ser entendido como referente ao interior da área destinada, cujos limites não são sequer definidos pela Lei, mas a toda essa região. Em apoio a esse entendimento, deve ser dito que era bem sabido então, sem sombra de dúvida, que nas matas interiores em que se devia implantar a área assim reservada, não habitavam Tupinambás, e sim apenas junto à costa.
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