quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Decisão que paralisou as obras da Barragem Figueiredo, no Ceará

Esta decisão é grande, mas vale a pena colocá-la aqui.

Vistos etc.
                     
 Trata-se de Ação Civil Pública manejada pela DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO em desfavor do DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS, objetivando compelir o réu a realizar perícia técnica na área diretamente afetada com a Construção do Açude Figueiredo e na área de influência direta a cargo de equipe interdisciplinar com o objetivo de proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o Patrimônio Cultural brasileiro, determinando-se medidas mitigadoras e compensatórias, colocando-se a perícia técnica como condicionante à concessão de Licença de Operação do empreendimento, além da condenação do réu a pagar danos morais coletivos.   
A autora alegou que a obra do Açude Figueiredo, que se encontra em estágio avançado, além de acarretar desagregação das comunidades tradicionais locais, especialmente da comunidade que vive na Lapa, em Potiretama/CE, não foi precedida de estudos referentes ao Patrimônio Cultural, conforme determinado na Resolução CONAMA 001/1986 (Art. 6º), de modo que se encontra irregular, pois vem causando dano ao patrimônio histórico e cultural brasileiro, de que "são símbolos explícitos a Casa de Farinha e o Engenho seculares que eram usados pelos moradores da Lapa", local que terá a maior parte de extensão alagada pelas águas da Barragem do Açude Público Figueiredo, em construção pelo réu. Além disso, afirmou que o Termo de Ajuste de Conduta firmado pelo réu em conjunto com o Ministério Público Federal, o IDACE e o INCRA, em 2010, com vista ao assentamento da população local, não vem sendo cumprido, acarretando transtornos à comunidade.
Concluiu pedindo a antecipação dos efeitos da tutela para que seja determinada a paralisação das obras de construção do Açude Figueiredo e aplicação de multa coercitiva, até que seja realizada a perícia técnica solicitada pelo IPHAN ao empreendedor, e que as medidas mitigadoras e compensatórias sejam efetivadas. Aduziu que a decisão limitar se impõe diante da verossimilhança do alegado, bem assim pelo risco potencial de dano, já que a conclusão da obra acarretará a inundação de séculos de história.
Relatado no essencial, passo a fundamentar e decidir:
                     
A antecipação da tutela pressupõe a existência verossimilhança do direito e de prova inequívoca do alegado, além do fundado receio de dano, conforme as diretrizes do Art. 273 e parágrafos do Código de Processo Civil. 
No caso, a autora pretende obstar a continuidade das obras da Barragem do Açude Figueiredo até que seja realizada a perícia recomendada pelo IPHAN, com o objetivo de proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o Patrimônio Cultural brasileiro, determinando-se medidas mitigadoras e compensatórias.
Consta dos autos manifestação técnica do IPHAN afirmando que a partir da análise do EIA/RIMA e consulta nos arquivos do setor de Arqueologia do órgão não foi constada a existência de estudos referentes ao Patrimônio Cultural, conforme determina a Resolução CONAMA 001/1986, em seu artigo 6º.
Além disso, o réu não observou o disposto na Portaria IPHAN 230, de 17 de dezembro de 2002, que determina a realização de estudos arqueológicos em três fases concomitantes às de licenciamento ambiental. Segundo a aludida Portaria, a primeira fase, denominada de Licença Prévia (LP), se conclui com a apresentação pública dos resultados a que chegaram os integrantes da equipe multidisciplinar que elaboraram o EIA/RIMA. A segunda fase, denominada de Licença de Instalação (LI), se caracteriza pela aprovação do EIA/RIMA, devendo referir-se ao profissional de arqueologia que deverá, com base nos dados produzidos pela equipe do EIA/RIMA, elaborar um plano de resgate dos sítios arqueológicos com relevância, identificados primordialmente pelas informações contidas na ficha padrão do CNSA/IPHAN localizados na área direta do empreendimento. A terceira fase, chamada de Licença de Operação (LO), ocorre quando da apresentação pelos arqueólogos integrantes da equipe de licenciamento ambiental de um novo programa de pesquisa, com base na metodologia definida pela Portaria nº 07/1988/IPHAN, visando o desenvolvimento de pesquisas nos sítios de maior relevância na área de entorno ambiental do empreendimento em licenciamento, bem como o estabelecimento em definitivo de um programa de divulgação e reintegração do acervo cultural à população diretamente afetada pelo empreendimento como forma de mitigação aos prejuízos causados ao patrimônio cultural e ambiental brasileiro.
Por oportuno, vejam-se as disposições da referida Portaria:                  
Art. 1º - Nesta fase, dever-se-á proceder à contextualização arqueológica e etnohistórica da área de influência do empreendimento, por meio de levantamento exaustivo de dados secundários e levantamento arqueológico de campo.  
Art. 2º - No caso de projetos afetando áreas arqueologicamente desconhecidas, pouco ou mal conhecidas que não permitam inferências sobre a área de intervenção do empreendimento, deverá ser providenciado levantamento arqueológico de campo pelo menos em sua área de influência direta. Este levantamento deverá contemplar todos os compartimentos ambientais significativos no contexto geral da área a ser implantada e deverá prever levantamento prospectivo de sub-superfície. 
I - O resultado final esperado é um relatório de caracterização e avaliação da situação atual do patrimônio arqueológico da área de estudo, sob a rubrica Diagnóstico.  
Art. 3º  - A avaliação dos impactos do empreendimento do patrimônio arqueológico regional será realizada com base no diagnóstico elaborado, na análise das cartas ambientais temáticas ( geologia, geomorfologia, hidrografia, declividade e vegetação ) e nas particularidades técnicas das obras. 
Art. 4º  - A partir do diagnóstico e avaliação de impactos, deverão ser elaborados os Programas de Prospecção e de Resgate compatíveis com o cronograma das obras e com as fases de licenciamento ambiental do empreendimento de forma a garantir a integridade do patrimônio cultural da área. 
Art. 5º  - Nesta fase, dever-se-á implantar o Programa de Prospecção proposto na fase anterior, o qual deverão prever prospecções intensivas (aprimorando a fase anterior de intervenções no subsolo) nos compartimentos ambientais de maior potencial arqueológico da área de influência direta do empreendimento e nos locais que sofrerão impactos indiretos potencialmente lesivos ao patrimônio arqueológico, tais como áreas de reassentamento de população, expansão urbana ou agrícola, serviços e obras de infra-estrutura. 
§ 1º - Os objetivos, nesta fase, são estimar a quantidade de sítios arqueológicos existentes nas áreas a serem afetadas direta ou indiretamente pelo empreendimento e a extensão, profundidade, diversidade cultural e grau de preservação nos depósitos arqueológicos para fins de detalhamento do Programa de Resgate Arqueológico proposto pelo EIA, o qual deverá ser implantado na próxima fase. 
§ 2º - O resultado final esperado é um Programa de Resgate Arqueológico fundamentado em critérios precisos de significância científica dos sítios arqueológicos ameaçados que justifique a seleção dos sítios a serem objeto de estudo em detalhe, em detrimento de outros, e a metodologia a ser empregada nos estudos. .   
Art. 6º  - Nesta fase, que corresponde ao período de implantação do empreendimento, quando ocorrem as obras de engenharia, deverá ser executado o Programa de Resgate Arqueológico proposto no EIA e detalhado na fase anterior. 
§ 1º - É nesta fase que deverão ser realizados os trabalhos de salvamento arqueológico nos sítios selecionados na fase anterior, por meio de escavações exaustivas, registro detalhado de cada sítio e de seu entorno e coleta de exemplares estatisticamente significativos da cultura material contida em cada sítio arqueológico. 
§ 2º - O resultado esperado é um relatório detalhado que especifique as atividades desenvolvidas em campo e em laboratório e apresente os resultados científicos dos esforços despendidos em termos de produção de conhecimento sobre arqueologia da área de estudo. Assim, a perda física dos sítios arqueológicos poderá ser efetivamente compensada pela incorporação dos conhecimentos produzidos à Memória Nacional.  
Art. 7º - O desenvolvimento dos estudos arqueológicos acima descritos, em todas as suas fases, implica trabalhos de laboratório e gabinete ( limpeza, triagem, registro, análise, interpretação, acondicionamento adequado do material coletado em campo, bem como programa de Educação Patrimonial ), os quais deverão estar previstos nos contratos entre os empreendedores e os arqueólogos responsáveis pelos estudos, tanto em termos de orçamento quanto de cronograma. 
Art. 8º  - No caso da destinação da guarda do material arqueológico retirado nas áreas, regiões ou municípios onde foram realizadas pesquisas arqueológicas, a guarda destes vestígios arqueológicos deverá ser garantida pelo empreendedor, seja na modernização, na ampliação, no fortalecimento de unidades existentes, ou mesmo na construção de unidades museológicas específicas para o caso.          
Neste contexto, o IPHAN posicionou-se no sentido da "completa irregularidade do empreendimento no que diz respeito ao cumprimento da legislação pertinente à proteção do patrimônio cultural brasileiro, considerando-se que os bens culturais nos quais se incluem as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artísticos, arqueológicos, paleontológico, ecológico e científico (Art. 216 da Constituição Federal) são protegidos por Lei". Além disso, no tocante aos bens arqueológicos, o IPHAN ressaltou que não foi observada a Lei da Arqueologia (Lei 3.924/61), que proíbe, em seu art. 3º, o "aproveitamente econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas, antes de serem devidamente pesquisadas" e determina que "qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere esta lei, será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível de acordo com o disposto nas leis penais." Ao cabo de sua manifestação técnica, o IPHAN apontou a necessidade de contratação, pelo empreendedor, "de uma equipe interdisciplinar (arqueólogos, historiadores, arquitetos) para realização de uma Perícia Técnica na Área Diretamente Afetada (ADA) e Área de Influência Direta (AID) do empreendimento em questão."
Como se nota, abstendo-se de realizar os estudos necessários, o réu deixou de cumprir a legislação infraconstitucional, bem assim a Constituição Federal, no seu art. 225, § 1º, IV, verbis:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(......)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
Por seu turno, a Lei 6.938, de 1981, no Art. 10, caput, positiva que:
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. (Redação dada ao caput pela Lei nº 7.804, de 18.07.1989, DOU 20.07.1989)
A Resolução CONAMA n. 001, de 1986, por sua vez, estabelece:
    Art. 6º - O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
    I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando:
a)        o meio físico - o subsolo, as águas, o ar e o clima, destacando os recursos minerais, a topografia, os tipos e aptidões do solo, os corpos d'água, o regime hidrológico, as correntes marinhas, as correntes atmosféricas;
b)        o meio biológico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora, destacando as espécies indicadoras da qualidade ambiental, de valor científico e econômico, raras e ameaçadas de extinção e as áreas de preservação permanente;
 c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.
 II - Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais.
 III - Definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, entre elas os equipamentos de controle e sistemas de tratamento de despejos, avaliando a eficiência de cada uma delas.
 lV - Elaboração do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem considerados.
    Parágrafo Único - Ao determinar a execução do estudo de impacto Ambiental o órgão estadual competente; ou o IBAMA ou quando couber, o Município fornecerá as instruções adicionais que se fizerem necessárias, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área
No caso, como ressaltado pelo IPHAN, na manifestação técnica de folha 44/45, o demandado não realizou estudos com vista à identificação dos sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, bem assim as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e o potencial de utilização futura desses recursos. A omissão do réu quanto ao cumprimento da legislação já autoriza o embargo da obra e a revisão da licença de construção da Barragem Pública. 
Anote-se que o demandado, instado a falar, não juntou aos autos qualquer comprovação no sentido do cumprimento da legislação pertinente à proteção do patrimônio cultural brasileiro, em atenção às exigências do CONAMA e do IPHAN. Deteve-se a falar sobre as medidas adotadas para cumprimento do Termo de Ajuste, deixando à margem a questão do estudo técnico com vista à proteção do patrimônio histórico-cultural, notadamente porque, não tendo observado a legislação, quedou-se sem argumentos de defesa.
Além disso, conquanto já tenha sido objeto de Termo de Ajuste de Conduta, por isso aqui somente referido, a obra vem acarretando dano à comunidade local, especialmente aos moradores da Lapa, em Potiretama/CE, já que até então não instalada a Agrovila prevista no TAC, destinada ao Assentamento dos expropriados atingidos pela construção pública. 
De qualquer modo, no que interessa mais de perto, vê-se que na região afetada pela obras há exemplos explícitos de ofensa ao patrimônio cultural, como são a "Casa de Farinha" e o "Engenho" seculares que eram usados pelo morados da Lapa, a merecer estudo detalhado com vista à proteção histórica e cultural, de modo que a perícia técnica requerida pela autora, que já deveria ter sido feita ao tempo o EIA/RIMA, se impõe com urgência.
Patente, pois, a verossimilhança do direito, além da prova inequívoca, consubstanciada em manifestação técnica do IPHAN. Quanto ao perigo da demora (periculum in mora), decorre da iminência da conclusão das obras, com inundação da área, inviabilizando, com isso, a realização dos estudos técnicos requisitos nesta ação.
Por fim, registre-se que não há risco de irreversibilidade da medida, já que pode a qualquer tempo ser revogada ou cassada com retorno das partes ao status quo ante.
                     
Decisão
                      
Pelos fundamentos expendidos, antecipo os efeitos da tutela para determinar a paralisação da obra da Barragem Figueiredo até que seja realizada a perícia técnica recomendada pelo IPHAN, por equipe interdisciplinar, constituída de arqueólogos, historiadores e arquitetos, e que as recomendações advindas do exame técnico sejam atendidas de modo a mitigar os danos ao patrimônio cultural resultantes da obra pública.
Assino o prazo de 90 (noventa) dias ao réu para que apresente o estudo técnico complementar ao EIA/RIMA, em atenção à disciplina legal, especialmente o disposto nas Portarias do CONAMA  e IPHAN, sob pena de pagar multa diária no valor de R$ 5.000,00, a ser depositada em proveito do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, nos termos dos Artigos 13 e 20 da Lei 7.347, de 1985.
Ciência às partes e ao MPF. Cite(m)-se. Expedientes necessários.
                      
                      Limoeiro do Norte, 09 de agosto de 2011.
                      FRANCISCO LUÍS RIOS ALVES.
                          Juiz Federal - 15ª Vara.

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